Amiúde

Crio este blog com duas certezas: a vontade de escrevê-lo vai passar e em algum momento, ainda que longínquo, vai voltar. Não espere encontrar mais do que textos desinteressantes de um jornalista desinteressado. A ver.

Saturday, August 02, 2008

Onde fogo se apaga com balde


- Fogo, fogo!

A correria e o nervosismo tomam o lugar da noite silenciosa e tranqüila. Um botijão de gás explode, faz um estrondo e aumenta o pânico.

A tensão é compartilhada por toda a vizinhança, mas somente seo Bonifácio vê seu único negócio, sua menina dos olhos, fonte de renda, ser consumida pelas chamas.

Na periferia, sobra pouco tempo para lamentar a ausência do Estado. Não há polícia, cria-se um poder paralelo; não há luz elétrica, recorre-se ao gato; não há bombeiros nas proximidades, usam-se baldes de água para enfrentar o fogo.

E foi assim que o pequeno mercadinho do seo Bonifácio, localizado numa das intrincadas ruas da Vila Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, acabou parcialmente salvo – ou parcialmente destruído, dependendo do ponto de vista.

Para recuperar seu comércio, o nanoempreendedor, 35 anos, fala mansa, tímido, contou com a ajuda dos amigos e com um recurso ainda incipiente, mas fundamental para o desenvolvimento econômico da base da pirâmide.

Alguns bancos estatais e uns poucos privados oferecem, em escala ainda pequena, o tal microcrédito. Trata-se de um empréstimo dirigido a nanoempresários cujo valor varia, em geral, de R$ 200 a R$ 12 mil e os juros, de 2% a 4%.

O Microcrédito de Consumo, como o das Casas Bahia, é importante para viabilizar desejos materiais daqueles com menos acesso; mas é o Microcrédito Produtivo Orientado que carrega em seu DNA um potencial transformador.

Dentro do Banco Real, uma das instituições a trabalhar nesse segmento, o produto é classificado como um “Private Banking às avessas”. Afinal, como nos bancos que administram fortunas, o gerente (no caso o agente) vai à casa do cliente, instrui, sugere, opera.

Os agentes de crédito, essenciais no processo, sobem e descem os morros, quebram a desconfiança dos moradores e transformam a administração de pequenos salões de beleza, locadoras, confecções e mercadinhos - como o do seo Bonifácio.

Aqueles incansáveis, que usam transporte público, calçam Havaianas genéricas, sofrem com a falta de saneamento e falam um português rico, mas distante das gramáticas, agora discursam quase como economistas. Falam com propriedade do fluxo de caixa, do capital de giro, do estoque, dos ativos, passivos.

Seo Bonifácio já era cliente do microcrédito quando sofreu o revés em seu comércio. Ótimo pagador, não teve dificuldades para renovar e fazer um investimento extra com a missão de recuperar o que havia perdido. Hoje já abriu uma filial, passa os fins de semana no novo apartamento adquirido na Praia Grande e quando pode viaja de avião a Pernambuco para visitar e ajudar a família, que certamente dele muito se orgulha.

A humildade continua a mesma do tempo em que passava dificuldades. Requisitado por revistas e emissoras de TV para ilustrar matérias sobre microcrédito, o comerciante se arruma com o esmero de uma noiva no dia do casamento, põe camisa, troca camisa, sua frio. Agradece e pede desculpas sem nem saber exatamente por quê.

Como seo Bonifácio, existem muitos outros. Mais carismáticos ou menos, menos prósperos ou mais. O certo é que são todos heróis. Ou, mais do que isso, exemplos. Para seus vizinhos e para as instituições - particulares e estatais. Exemplos de que é possível. E de que o microcrédito não faz milagre, mas coloca o pessoal de mão calejada na condição de agente e protagonista da transformação de sua própria realidade.

Labels: , , ,