Amiúde

Crio este blog com duas certezas: a vontade de escrevê-lo vai passar e em algum momento, ainda que longínquo, vai voltar. Não espere encontrar mais do que textos desinteressantes de um jornalista desinteressado. A ver.

Friday, August 25, 2006

Obrigado e volte sempre, chefe!

— Obrigado e volte sempre, chefe!, cumpriu o ritual à risca, na Avenida Nazaré, o guardador de carros.

Nos meus 24 anos de vida nunca morei a mais de 15 minutos do Museu do Ipiranga. Ainda assim, até esta manhã só tinha na memória algumas poucas imagens do local, cuja minha única visita acontecera na infância, numa daquelas excursões escolares.

Férias acabando, aproveitei para revisitar o espaço, que agora descubro se chamar Museu Paulista da USP. Desde aquela primeira vez muito tempo se passou. O tipo de lata de refrigerante que levava na lancheira, por exemplo, nem existe mais. Pessoas com a minha falta de habilidade já não sofrem para retirar o lacre na parte superior do recipiente de alumínio.

O Museu também mudou bastante. Antes o lago artificial à sua frente estava sujo e abandonado; servia apenas para que jogássemos pedrinhas na água com o desafio de fazê-las quicar o máximo de vezes possível. Agora o cenário é outro. Após uma reforma de 30 meses, o governo tucano, reconheça-se, recuperou o local: obras foram restauradas, as paredes pintadas e o entorno reavivado. Um legítimo cartão postal.

O parque que contém o sítio histórico, aliás, é digno de nota. Lindo para passear, descansar ou correr. À frente do lago artificial, agora mais limpo, há outro, retangular. Nas suas duas extremidades maiores existem esculturas repetidas e alinhadas que com pequenos jatos d’água produzem belo efeito visual. Ao fundo, uma grande fonte; ao redor, um jardim florido no melhor estilo Edward Mãos de Tesoura.

Rodei um pouco pelo espaço externo e fui atropelado pelas excursões escolares. Os garotinhos e garotinhas cuidavam do próprio lanche, do caderno com o questionário fornecido pela professora e da inexorável missão de zombar do colega mais próximo. Já os vários idosos passeavam tranqüilamente aos pares ou na companhia de um cachorro. Pós-adolescentes e o que geralmente entendemos por adultos eram coisa rara.

Com 2 reais paguei minha entrada no Museu e ganhei um guia de bolso. Logo no saguão fui ladeado por duas importantes rodovias: de um lado, uma estátua de Antônio Raposo Tavares; de outro, Fernão Dias Pais Leme. Ambos bandeirantes no século XVII e contrários à presença dos jesuítas. À frente, posicionado sobre a escadaria, havia um Dom Pedro I em bronze. Senhor dos seus domínios, era capaz, naquela posição, de ver cada pessoa que adentrava o espaço.

O Museu foi projetado pelo italiano Tommaso Gaudêncio Bezzi, entre 1895 e 1890, em comemoração à proclamação da Independência do Brasil. Ocupa, aliás, o espaço onde teria sido gritado o “Independência ou morte!”. Naquele tempo, como neste, a apropriação política da arte era uma realidade. Por isso, com a constituição da República em 1889, o acervo foi substituído para sinalizar o progresso republicano em detrimento do então recente passado monarquista. O prédio idealizado por Bezzi chegou a se tornar um Museu de História Natural e só mais tarde voltou a ser caracterizado como uma homenagem ao 7 de setembro de 1822.

No piso superior está o salão principal. Lá se encontra o “Grito do Ipiranga”, enorme tela de Pedro Américo de Figueiredo e Mello. A pintura tem Dom Pedro ao centro, rodeado por figuras anônimas, outras ilustres, entre elas o próprio Pedro Américo. A obra tem movimento e dá a idéia de um momento de agitação, como deve ser qualquer passagem histórica.

Nesta sala, quando observava um retrato da Imperatriz Leopoldina, um grupo de japoneses se aproximou. Uma das mulheres falava alto. Muito alto. A guia discursava em japonês e não parava para respirar. Pouco importa se as explicações eram corretas ou se os asiáticos estavam de fato interessados na história brasileira. O que posso afirmar é que, excluídas as excursões escolares, vi mais estrangeiros do que brasileiros prestigiando a nossa história.

Os japoneses estavam espalhados por todo o espaço interno e em vários grupos. Havia guias homens e mulheres, todos falando no idioma asiático sem poupar as cordas vocais. O sotaque português também foi notado e um casal de algum lugar de língua inglesa arrancou risos de alunos do tradicional Colégio Porto Seguro.

Os nipônicos em sua maioria carregavam máquinas fotográficas, embora o uso fosse proibido pelo regulamento da casa. Faziam lembrar as clássicas propagandas da Kodak, mas foi outra fabricante quem chamou a atenção. Numa sala que tratava do comércio em São Paulo no fim do século XIX e começo do XX, fazia parte do acervo uma máquina de costurar Singer, certamente sem significado algum para as crianças que se deslocavam alucinadamente pelo Museu.

Detive-me um instante lendo as propagandas da época. Notável a diferença da grafia das palavras em relação à forma hodierna. Usavam e abusavam do “y”, do “ph” no lugar do “f” e das consoantes dobradas. Se as crianças do Porto Seguro não sentiam a mesma nostalgia que eu ao ver a máquina de costura da Singer ou uma máquina de escrever, depreendi que igualmente eu não poderia imaginar o significado daqueles anúncios para o seo Roberto, meu avô, vivo na época em que o Ipiranga era Ypiranga.

Pernas cansadas, hora de cumprir outros deveres mais chatos e menos culturais. Desci a rampa, passei em frente às fontes e me arrependi profundamente de não ter feito como os japoneses e levado a câmera fotográfica. Ficaram para trás as esculturas, telas, crianças, idosos, cachorros, jardim. Pela frente havia a São Paulo do século XXI, bem diferente da cidade retratada no Museu. Na saída desse túnel do tempo, o primeiro personagem a se pronunciar foi um bem típico da metrópole.

— Obrigado e volte sempre, chefe!, cumpriu o ritual à risca, na Avenida Nazaré , o guardador de carros.

1 Comments:

At 7:54 AM, Blogger Fourier said...

Belo texto, conciso e bastante elaborado.

Um texto que mistura o passado com o presente de um ótimo jornalista.

Belo Blog.

Entrará nos meus favoritos

 

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