Amiúde

Crio este blog com duas certezas: a vontade de escrevê-lo vai passar e em algum momento, ainda que longínquo, vai voltar. Não espere encontrar mais do que textos desinteressantes de um jornalista desinteressado. A ver.

Sunday, September 17, 2006

A insensatez interrompida

Naquele domingo, como em qualquer outro, todos chegaram atrasados ao ponto de encontro da equipe. Os óculos escuros eram regra, mas pouco tinham a ver com o sol forte que brilhava em São Paulo. Serviam mais para esconder a cara amassada dos que não haviam dormido ou como adereço embelezador, pura e simplesmente. Depois de horas ouvindo música ruim, tomando alcoólicos e fazendo pose, era hora de a classe média exaltar suas façanhas noturnas e depois mostrar astúcia subjugando o outro time no futebol.

Três quartos de hora depois do combinado, todos estavam a postos. Mochila nas costas penduradas por uma só alça, bermudas abaixo do joelho e no pé as Havaianas. Havia quase tantos carros quanto pessoas para ir logo ali, no meio da favela, para o campeonato da Várzea. Dois veículos ficam estacionados e o resto sai em comboio, cortando semáforos vermelhos e fazendo manobras indiscretas.

Eu era o que havia acordado mais cedo, por certo. Tempo hábil para a ducha quente e gorda no meu – e só meu – banheiro. Ainda com o olho meio pesado, li os cadernos de esportes, cidades e Brasil da Folha de São Paulo. Não que a queda de 0,5 p.p. da taxa selic ou a discussão da reforma política me despertassem sentimentos, mas é o mínimo que alguém que estudou em uma instituição cuja mensalidade ultrapassa os mil reais deve fazer. Desci de elevador, mp3 no ouvido; dirigi 10 minutos e me juntei aos demais.

Longe dali, um garoto de 19 anos se levantara ainda mais cedo que eu. O sol entrou cedo no barraco e ele comeu metade de um pacote de bolachas Santa Marta. Escovou os dentes com pressa na torneira da cozinha improvisada, embrulhou a chuteira desajeitado e desceu as vielas correndo. Edson dos Santos, o “Amendoim”, jamais teve a carteira de trabalho assinada, como eu; vendendo salgadinhos industrializados no semáforo, dedica quase todo o seu dia ao trabalho, como eu; no tempo que sobra, reclama do pouco dinheiro que ganha, como eu; e no domingo quer extravasar a tensão e se divertir no futebol, como todos nós.

Amendoim e seus pares se encontraram para ir ao campo quando meu despertador sequer havia tocado. Andaram 15 minutos pelo asfalto sujo até o ponto de ônibus. Pegaram duas conduções e em pouco menos de duas horas chegaram à várzea. Na falta do que se apegar, se apegavam ao futebol e faziam questão de voltar para casa com mais uma vitória na conta do time da comunidade.

Em cima da hora chegamos. “Chocolate, coco, limão!”. A desorganização típica permitia tempo para um sorvete daqueles com gosto de água suja. Metade foi para o lixo antes de e o time ir para o vestiário. Pouca coisa pode ser pior do que aquele espaço, onde o cheiro é terrível e o chão, insalubre.

Camisas distribuídas, escalação definida. Nem no momento de pedir seriedade em campo as brincadeiras acabam. Por último, a roda se fecha e todos rezam em coro a “Ave Maria”. Somos todos daqueles que só se lembram de Deus quando não resolvem por conta própria os problemas aqui embaixo. E, a despeito da segurança estampada no rosto de cada um, isso revela a desconfiança em relação ao resultado de cada partida.

Do outro lado da parede a oração é mais vibrante. Não sei se porque são de fato mais devotos ou se porque precisam recorrer mais vezes à divindade para escapar dos infortúnios da vida. Ao contrário de nós, não pareciam numa missa. Pronunciavam cada palavra da mesma oração com muito mais vibração e em ritmo acelerado. Na roda, apertavam com as mãos os ombros do colega ao lado e jamais deixavam de juntar o pé com o do próximo afim de não quebrar a corrente.

Do nosso lado, eu pouco me empenhava na reza. Quando fechava os olhos era para pedir a Deus apenas que saísse inteiro de lá. O ambiente era bastante hostil e a vitória nunca me importou tanto. Queria não mais que jogar o jogo e tentar alguns bons lances. Ademais, o físico de quem passa a semana trabalhando sentado na frente do computador não permitia nada além. Eu era o retrato de mim mesmo em campo: racional, preguiçoso e calculista.

O Amendoim, por outro lado, corria com mais velocidade do que quando pendura salgadinhos no retrovisor dos carros durante o farol vermelho. Como quem não tem muito a perder, é ousado e audacioso em campo. Além disso, tem muito mais vontade de vencer do que eu. Nosso contato em campo foi bem rápido. O primeiro foi também o último.

Alguém certa vez disse que eu jogava bem e meu inconsciente até hoje acredita nisso. Foi num desses momentos de insensatez que vislumbrei uma jogada elaborada dentro do grande círculo. A velocidade de quem digita muito e se alonga pouco, todavia, me impediu. Toquei na bola com o pé esquerdo, ajeitei com o direito e caminhei dois passos com ela rolando; corrigi a postura, levantei os ombros e a cabeça, de maneira que só faltou a execução perfeita do passe para concluir a imitação de um craque.

Pouco atrás estava o Amendoim. Ele tinha a fisionomia tensa do momento da oração. Queria a bola, mas também queria a mim. Arregalou os olhos, cerrou os punhos e partiu em minha direção sem que eu o visse, já que estava um pouco recuado. Ali, aos seus olhos, eu era o branco abastado que se apropria de uma porção exagerada da riqueza do país e não deixa o suficiente para o povo da comunidade; era a autoridade do policial opressor, representante do tal “sistema”; e o professor bem articulado, que o destratava ao cobrar os deveres.

Quando já imaginava o lançamento genial, fui atropelado por alguma coisa. Rolei algumas vezes no chão, comi um pouco de terra e tentei fazer como os jogadores profissionais após uma entrada violenta, contorcendo-me e gemendo com os olhos fechados. O Amendoim, que acabara de me dar uma ombrada cuja força eu seria incapaz de reproduzir, desferiu impropérios contra o juiz e chamou o seu alvo de fresco. Meus colegas de time reagiram e eu mesmo fiz cara de mal, embora só pensasse em chegar são no conforto do lar.

Na exaltação, os colegas de Vila Mariana deram vazão a todo o preconceito mais bem guardado. Observações sobre a falta de estudos, as roupas estropiadas e a origem nordestina dos rivais não faltaram. Houve quem visse o Amendoim como o garoto que rouba nossa carteira no metrô; que polui visualmente a cidade construindo barracos em terrenos irregulares; que nos chama de “playboy” e nos faz temer porque pouco tem a perder.

O sol da segunda-feira era tão brilhante quanto o de domingo, embora o dia fosse mais frio e barulhento. Notável também o volume de carros, infinitamente maior. Tão agrupados estavam os veículos no congestionamento que formavam uma massa quase contínua. Os rostos novamente estavam amassados pelo sono mal dormido ou não dormido. Não tinham, contudo, a satisfação de quem se prepara para o lazer, mas o tédio de quem começa uma semana de trabalho.

Retomei o ritual da ducha quente e gorda no banheiro particular e saí ao trabalho. Sonolento, dirigi quase no piloto automático ouvindo o horário eleitoral. Depois de 40 minutos cruzei a Avenida Rebouças pela Brasil e alcancei a Henrique Schalmann. Desatento e na faixa da direita, nem vi o Amendoim colocando seu produto nos retrovisores dos carros ao lado durante o farol vermelho.

Convictos de sermos tão diferentes, eu e o jovem de 19 anos, que acorda antes da cidade se colocar em movimento, desempenhamos sem saber o mesmo papel: o de personagens da metrópole que continuam a fazer desta metrópole esta metrópole.